quinta-feira, 1 de setembro de 2011

PROCESSO DE INSOLVÊNCIA -ENCERRAMENTO -EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE -RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS

A exoneração dos créditos sobre a insolvência surge como uma forma inovadora conjugante do princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. As pessoas singulares de boa fé incorridas em processo de insolvência podem obter tal benefício se durante um período de cinco anos - designado por período da cessão - se mantiverem adstritas ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Período durante o qual têm de assumir várias obrigações, como seja a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, cumprindo o devedor todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que o liberta das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento (preâmbulo do citado Decreto-Lei 53/2004).


Trata-se de um procedimento que impõe dois momentos distintos: o despacho inicial e o despacho de exoneração (artigos 238º e 237º do CIRE). No primeiro momento, incumbe averiguar se há fundamento para o indeferimento liminar do incidente ou se estão reunidas condições para determinar o seu prosseguimento. A Senhora Juiz considerou não estarem verificados os pressupostos processuais justificativos do seu prosseguimento e julgou extinta a instância por impossibilidade/inutilidade superveniente da lide com base no encerramento do processo de insolvência e na ausência de reclamação de créditos. Incumbe-nos, pois, averiguar se essas duas circunstâncias são obstativas do prosseguimento do incidente.

Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (artigo 235º do CIRE). Quando o património do devedor é presumivelmente insuficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando garantida qualquer outra forma de satisfação, o juiz profere uma declaração de insolvência restrita, com efeitos reduzidos ao próprio processo onde é declarada e determina a abertura do incidente de qualificação com carácter limitado (artigo 39º, 1, do CIRE). Declaração de insolvência restrita que pode transmutar-se em insolvência com carácter pleno se algum interessado requerer que a sentença venha a ser complementada com as restantes menções do artigo 36º ex vi artigo 39º, 2, a), do CIRE. Como o processo de insolvência tem por finalidade o pagamento dos créditos da insolvência na medida em que o património do devedor o garanta, a constatação de que a massa é insuficiente para fazer face às respectivas dívidas, incluindo custas do processo e remuneração do administrador de insolvência, não há justificação plausível para o prosseguimento do processo, que é encerrado. Por isso, se qualquer interessado optar por requerer o complemento da sentença, tem de depositar à ordem do tribunal o montante que o juiz reputar de razoavelmente necessário para garantir o pagamento das custas e dívidas ou caucionar esse pagamento mediante a prestação de garantia bancária.

Não sendo requerido o complemento da sentença, o devedor não fica privado dos seus poderes de administração e disposição do seu património nem se produzem quaisquer efeitos dos que normalmente estão associados à declaração de insolvência (artigo 39º, n.º7, a), do CIRE). Por isso, o devedor continua a dispor e a administrar todo o seu património, o que poderá retirar sentido ao pedido de exoneração do passivo restante. Tanto assim é que esta declaração de insolvência restrita não pode ter lugar quando tenha sido atempadamente deduzido pedido de exoneração do passivo restante por parte do devedor, admitido quando o devedor é uma pessoa singular (artigo 39º do CIRE).

O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, sendo sempre rejeitado quando for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório e livremente aceite ou rejeitado pelo juiz se apresentado no período intermédio (artigo 236º, 1, do CIRE). Ora, o apresentante à insolvência, sendo pessoa singular, logo na petição inicial formulou a sua pretensão de exoneração do passivo restante, alegando estarem verificados os respectivos pressupostos legais. Dedução que inviabilizou a prolação de sentença simplificada, a qual só poderia ter lugar se não tivesse sido atempadamente deduzido o pedido de exoneração do passivo restante por parte do devedor. E a sentença foi proferida com carácter pleno mas, na assembleia de apreciação do relatório, atenta a insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas, foi declarado encerrado o processo de insolvência e determinado o prosseguimento do incidente de qualificação de insolvência com carácter limitado.

O encerramento do processo de insolvência faz cessar todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência e faculta ao devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios. E os credores poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242º do CIRE (artigo 233º do CIRE). Norma esta que, relativa ao incidente de exoneração do passivo restante, estatui que não são permitidas execuções sobre os bens do devedor destinados à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período da cessão. No fundo, estabelece-se uma autonomia patrimonial dos rendimentos de devedor durante o período de cessão, que ficam afectos à satisfação dos créditos sobre a insolvência e, assim não sendo, os credores recuperam as faculdades de exercício dos seus créditos.

O cotejo destes normativos permite aceitar que o encerramento do processo de insolvência, ainda que decretado na assembleia de apreciação do relatório, tem os seus efeitos definidos no artigo 233º do CIRE, dentre os quais se não encontra excluída a admissão do incidente de exoneração do passivo restante. Vale por dizer que o artigo 233º não atribui à declaração de encerramento do processo um efeito excludente desse incidente. Ao invés, no seu n.º1, alínea c), com aquela alusão à igualdade dos credores durante o período de cessão (artigo 242º, 1, do CIRE) antes parece deixar a porta aberta ao seu prosseguimento.


Esta solução parece-nos reforçada pelo fim ínsito à exoneração do passivo restante, que não está focalizado na satisfação dos credores da insolvência mas na concessão ao insolvente de uma segunda oportunidade para o liberar do passivo que não seja pago no processo de insolvência. Sendo o devedor uma pessoa singular, pretendeu-se conferir-lhe a possibilidade de obter a exoneração das suas obrigações perante os credores de insolvência e que não puderam ser liquidadas no processo de insolvência ou nos cinco anos subsequentes, por forma a evitar a sua vinculação a tais obrigações até ao limite do prazo de prescrição, que pode atingir os 20 anos (artigo 309º do Código Civill). Solução que também não agrava a situação dos credores, cujo prejuízo já derivava da insuficiência do património do devedor para a satisfação dos seus créditos e ainda poderão vir a obter, no período da cessão, alguma satisfação pela cessão do rendimento disponível que o devedor venha a adquirir no futuro.


Tudo para ajuizar que nos parece rejeitável a decidida limitação do exercício do direito a exoneração do passivo restante devido ao encerramento do processo.
Igualmente não nos parece obstativa do prosseguimento da exoneração do passivo restante a circunstância dos credores não terem reclamado os seus créditos na insolvência.
Os credores da insolvência que pretendam fazer valer os seus direitos têm de reclamar os seus créditos, mas a reclamação não é essencial para o reconhecimento do crédito, dado que o administrador da insolvência tem o dever de reconhecer não apenas os créditos reclamados mas também os que constem dos elementos da contabilidade do devedor e os que, por outra forma, sejam do seu conhecimento (artigo 129º, 1, do CIRE). Mesmo o encerramento do processo não obstaculiza à satisfação dos interesses dos credores. A alínea c) do n.º1 do artigo 233º atribui o valor de título executivo às sentenças homologatórias do plano de insolvência e do plano de pagamento, à sentença de verificação de créditos ou decisão proferida em acção de verificação ulterior e até os credores da massa podem reclamar do devedor a satisfação dos seus direitos na parte que o não tenha sido no processo de insolvência.


"In casu", o prazo para a reclamação de créditos foi fixado em 30 dias na sentença de insolvência, prolatada em 13-10-2010. E tendo sido apurados pela administradora da insolvência dois credores, ínsitos à lista provisória, cujos créditos não foram impugnados, sempre estariam em condições de serem reconhecidos e aprovados (artigo 136º do CIRE). Acresce que, mesmo depois de findo o prazo fixado para a reclamação de créditos, é ainda possível reclamá-los ulteriormente (artigo 146º, na redacção dada pela Lei 25/2009, de 12 de Agosto). Tudo a significar que a ausência de reclamação dos créditos sobre o devedor, constantes da lista apresentada pela administradora de insolvência, não impede o seu reconhecimento e pagamento no processo de insolvência. Donde não haja qualquer inutilidade/impossibilidade no prosseguimento do incidente de exoneração do passivo. Ao invés, a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, aplicando-se o artigo 217º, a significar somente que não afecta os direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou terceiros garantes (artigo 245º, 1, do CIRE). Vale por dizer que, preenchido o período da cessão, se o juiz proferir despacho de exoneração do passivo restante o devedor alcança a liberação dos créditos sobre a insolvência, ainda que não tenham sido reclamados. Como a extinção dos créditos emergente da exoneração abrange também os que não tenham sido reclamados na insolvência a exoneração comporta a extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda existam no momento em que o despacho de exoneração é proferido. E assim se patenteia o interesse no prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante apesar dos credores reconhecidos pela administradora não terem reclamado os seus créditos na insolvência.
No caso, a insolvência foi qualificada como fortuita, pelo que o encerramento do processo determina a cessação de todos os efeitos da declaração de insolvência e o devedor recupera os poderes de disposição e administração dos seus bens. Porém, o insolvente não tem qualquer património, o valor do passivo é de cerca de 9.000,00 euros e juros e os seus rendimentos reduzem-se ao vencimento auferido, traduzido no salário mínimo nacional. As suas despesas fixas mensais correspondem a 250,00 euros de renda de casa e 75,00 euros de pensão de alimentos a um filho menor, o que traduz, ao menos no imediato, a impossibilidade prática de liberar "rendimento disponível" para entregar ao fiduciário. Porém, não releva para a decisão de exoneração o montante dos créditos sobre a insolvência que tenha sido satisfeito.

Não obstante a cessão do rendimento disponível constituir um ónus imposto ao devedor como contrapartida da exoneração do passivo, o escasso rendimento de que o insolvente dispõe no imediato não significa que o futuro não lhe permita perceber importância pecuniária superior. A própria terminologia do preceito (n.º 2 do artigo 239º do CIRE) alude ao "rendimento disponível que o devedor venha a auferir", com obrigação de o declarar e de exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e de a procurar diligentemente quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto (n.º 4 do artigo 239º do CIRE).
Em todo o caso, prosseguindo o incidente de exoneração do passivo restante, cabe ao juiz do processo o proferimento do despacho liminar, designadamente para verificar se ocorrem os fundamentos de indeferimento liminar expressos no artigo 238º do CIRE, apreciação vedada a este Tribunal da Relação, por o seu conhecimento implicar a perda do primeiro grau de jurisdição, de que se não pode prescindir, nem sequer por acordo das partes.

Assim,
1. O encerramento do processo de insolvência não exclui a admissão do incidente de exoneração do passivo restante e, por isso, não implica a inutilidade/impossibilidade do prosseguimento do incidente.

2. Preenchido o período da cessão, se o juiz proferir despacho de exoneração do passivo restante o devedor alcança a extinção dos créditos sobre a insolvência, ainda que nela não tenham sido reclamados.
3. Assim, também não obsta ao prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante a ausência de reclamação de créditos na insolvência.


O encerramento do processo de insolvência não exclui a admissão do incidente de exoneração do passivo restante e, por isso, não implica a inutilidade/impossibilidade do prosseguimento do incidente.

Preenchido o período da cessão, se o juiz proferir despacho de exoneração do passivo restante o devedor alcança a extinção dos créditos sobre a insolvência, ainda que nela não tenham sido reclamados.
Assim, também não obsta ao prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante a ausência de reclamação de créditos na insolvência.



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